sábado, 20 de março de 2010

Rituais Esquizofrénicos


“Sou crente e sonho com um mundo redondo, geometricamente perfeito
(José Luis Lopes)

Na forma como vemos o mundo, já existem novas formas pensadas e ajustadas ao novo mundo. Contudo, não temos ainda olhares prontos para o fixarmos num ponto e o elegermos, através da forma que podemos e sabemos…

Glorificamo-nos, sempre que das nossas mãos escorrem pétalas em formas de palavras, fazendo jus à nossa própria existência; falhada umas vezes, engrandecida outras tantas, mas nada fazemos para adubar a terra, e dela retirar a substância que nos fará criar e engrandecer os momentos dignos da nossa própria aceitação, em liberdade e fraternidade. Caminhamos por forma a conseguir sobrepor as ideias a um único pensamento, mas ele, pobre como sempre o mundo o viu, aconchega-se ao denominador comum de alter-egos esfomeados. Abriram-se os portões à amplitude de um universo restrito de palavras vãs, no entanto, muitas diferenciadas, escancaram ao mundo, os restos mortais de alguns egos carenciados do alto, por não saberem aceder-lhes na sua forma mais pura. Copulam-se nas vertentes mais enganadoras, vivendo segundo rituais esquizofrénicos dançando e rodopiando em moldes contínuos, encurtando os movimentos sobrepostos aos nossos pés.

(Ausentes de novas formas, despem-se sobre um circulo fechado, mas caracterizam-se pelos novos modelos, que se encurtam nas distâncias de um caminho sobreposto )

Há noites, que tenho no corpo aquela doce lembrança, de quando me cingia à noite e a convidava para dançar comigo nas ruas desertas da minha cidade, mas ela, desgostosa dos dias passados, assumia-se presa à escuridão nocturna, e ali se fazia passar por mais um dia no seu términos. Vertigens enganadoras trazem-nos o mundo cortado em pedaços, e nós sempre que o abocanhamos, abastecemo-nos de gotas perdidas de orvalhos, que se prendem às novas correntes e que se preparam já para lançar mão dos nossos corpos disseminados.

In A Voz do SiLêncio

(Foto e Texto: Dolores Marques
Inspirado num outro de JLL) Ler mais:

quarta-feira, 17 de março de 2010

Vozes de Burro não chegam ao céu


O ronco do S. Pedro ouvia-se por todo o Céu. Todos os anjinhos sabiam que depois do almoço o homem das chaves recolhia aos seus aposentos para descansar a sesta.
Depois de uma boa refeição, mesmo um santo e com pergaminhos na arte dos sacrifícios não resistia ao cair dum desassossego da bílis.
Ali, naquele espaço, não fazia calor, isso era coisa do Inferno. As temperaturas do Céu eram climatizadas, mas os hábitos terrenos de quem andou nos desertos da Galileia tinham viajado até ao Paraíso com o seu dono. Tinham sido tempos difíceis, agora era hora de aproveitar o descanso merecido e, todos os dias, aquela hora era sagrada, não vivesse ele num local sagrado.

Ouve-se um leve bater na porta. Diria até que era um batimento tímido…
S. Pedro acorda estremunhado e com voz irritadiça pergunta:
- Quem é?
Não havia diferença entre o timbre de voz e o ronco da sesta.
O Anjo que secretariava o S. Pedro, ainda novo nestas funções, tinha chegado ao Céu havia menos de duas semanas, envenenado por uma mulher que o atraiçoava com o padre da paróquia e, para não criar problemas à Santa Sé, arranjaram-lhe aquele lugarzinho para comprar o seu silêncio. Sim, porque ele também andava metido com a mulher do sacristão, que por sinal era filha do Padre.

- Sua eminência, está aqui um senhor que diz que é poeta do Luso Poemas. Eu já lhe disse que sua eminência estava a dormir, mas ele insiste em falar com sua eminência!
- Diz-lhe para vir mais tarde! Diz-lhe que estou ocupado, estou em oração e recolhido na cela em penitência.
- Sua eminência desculpe, mas já lhe disse isso tudo como me ensinou, mas ele insiste em ser atendido! Ameaçou até que, se não o atendesse rapidamente, fazia tal chinfrim que o Céu todo iria ficar apavorado, e assim todos ficariam a saber o que o traz por cá.
S. Pedro irritado e já sem paciência, voltou a repetir mas com uma voz que mais parecia um motor gripado…
- Diz-lhe que venha cá mais tarde ou mando-o para o Inferno!

- Sua eminência desculpe insistir, mas também já lhe disse isso. O poeta respondeu que do Inferno veio ele, e pelo que diz, Satanás não o aceitou. Está de cabeça perdida, e na minha opinião, está a passar das marcas e, segundo ele diz, do Luso Poemas não entra ninguém no Inferno, pois todos os que lá entraram, até à data, transformaram o Inferno num verdadeiro Inferno. Sua eminência desculpe, mas ouve-se em surdina por aqui, que o último poeta do Luso que entrou no Inferno, ao fim de meia dúzia de horas, armou semelhante burburinho que nem a intervenção do Diabo que estava de serviço conseguiu acalmar os ânimos. Foi necessária mesmo a intervenção de Lúcifer para fazer baixar a temperatura. Saiba também sua eminência que tudo isto aconteceu por causa de um comentário a uma poetisa, a dita senhora andava no Inferno com um casaco de pele de leopardo! Compreende-se, com aquele calor e a flustreca a pavonear-se de casaco e botas de saltos altos, e pior, de cachecol de lã! E ainda por cima, os poetas machos não tiravam olhos da sirigaita. Todo o dia era beijinho para ali, beijinho para acolá, e as outras que andavam de biquíni e fio dental, sentiram-se ameaçadas e com toda a razão, uma pouca-vergonha!!! O que faço Eminência?

- Meu filho, o que é que ele disse que fazia se não o atendesse?
- Disse que berrava!
- Então não ligues, deixa-o berrar, vozes de burro não chegam ao céu. Fecha a porta, e não voltes a incomodar-me quando estou a meditar, muito menos por poetas do Luso Poemas.
Se criar muitos problemas fala com o chefe, e diz-lhe que o melhor é fazer um milagre e mandar outra vez o gajo para baixo. Não quero aqui corja dessa, só trazem problemas! Agora vai…

José Luís Lopes

terça-feira, 9 de março de 2010

A solidão amiga



A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:“Por muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.!“Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, freqüentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, freqüentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.Ali as palavras e os tempospoemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.(Correio Popular, 30/06/2002)

Rubem Alves

segunda-feira, 8 de março de 2010

Carta a Uma Amiga (homenagem às mulheres da minha família)


(foto Dolores Marques na aldeia de Moção)
*
A estabilidade é das coisas mais raras amiga. Gostava de poder dizer-te que para se atingir esse estado, são necessárias muitas mudanças, difíceis mas urgentes rumo a um novo caminho. O conhecimento de nós próprios. Nunca soube o que era estar, ser em plenitude, dar-me sem medos, de sofrer.Lá na minha aldeia, vivi esse estado, essa intensa plenitude. Cantava e o meu eco difundia-se por entre as serranias que me abrigavam do resto do mundo. Olhava o céu e via rasgos no céu azul, aviões que mais pareciam aves gigantes, que me conduziam o olhar a terras distantes, ainda por desbravar. Imaginação não me faltava, quando num fim de tarde depois da escola, com as teorias, os ensinamentos da História de Portugal, me via por essas terras, a viajar rumo ao desconhecido.

Nasci na aldeia de Moção em Castro Daire na Beira Alta, completei lá a quarta classe, assim como os meus dois irmãos, junto de uma avó materna e uma tia. Foram os meus melhores anos - a minha infância. O contacto com a natureza; as montanhas, o rio, os campos, a água a correr pelas pedras da calçada. Uma tia e uma avó que nunca foram á escola, mas que me transmitiram os seus valores, gente simples de trabalho árduo da terra. Com a minha tia Carmo aprendi a comunicar com todos os seres vivos. Falava com as pedras, as plantas, a água, os milhos, os feijões, as couves, os pássaros, o vento, a chuva…. Contava-me histórias umas de encantar, outras de amedrontar. Passavam de geração em geração, aquelas histórias que todos conhecemos. A minha avó Lívia era uma força, dentro da sensibilidade no feminino. Trabalhava a terra e não desistiu nunca de viver a vida intensamente, apesar das dificuldades daquela época, em que ficou só, após a emigração do meu avô para o Brasil. Um homem de nome Herculano que não conheci, por lá ficou e faleceu num acidente trágico. Lembro o ano em que iria regressar, após uma ausência de 28 anos. Foi no inicio do verão, e as expectativas eram muitas. Tudo ficou num vazio, após a notícia da sua morte, em que ardeu o local de trabalho com ele dentro.

A imagem ainda presente, a descer a calçada com os olhares postos em mim. Eu de vestido branco rendilhado até ao joelho, uma fita de cetim preta em forma de laço junto ao peito. A minha mãe fazia os meus vestidos. Gostava deles todos, porque rodava e eles faziam um balão. Até isso me deliciava – este envolvimento que me prendia isolando-me do que me rodeava. Um momento só meu, em que faltou conhecer uma parte de mim. Ficou-se pelo sentir e pela força da minha imaginação.
Cheguei a Lisboa e lembro de perguntar à minha mãe se faltava muito para chegar. Ela responde “já estamos em Lisboa”. Uma tristeza invade-me alma. Lembro o azul do céu, as estrelas nas noites que sobrevoam as serras, o nascer do sol com os seus raios gigantes, o perfume que se solta no fim de tarde, e a minha aldeia sempre…Aqui respira-se…vive-se numa comunhão com a natureza e o seu esplendor.
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Em homenagem à minha avó Lívia, à minha tia Carmo e minha mãe Deolinda.
Um mês quente de Agosto, a aldeia cheia de gente e a minha avó com um brilho no olhar, olhou-me e disse-me, após fazer referência ao movimento da aldeia que a lembrou dos tempos da sua juventude:
" repara que até as pedras da calçada sorriem para nós..."
E lançou um olhar calçada abaixo, depositando-o de seguida no meu, que a olhava pensativa

Dolores Marques

domingo, 7 de março de 2010

A minha luta.

Perguntamo-nos muitas vezes porque nascemos em famílias com determinadas características e não numa outra qualquer.
Se as nossas famílias têm um papel fundamental no nosso percurso, disso não tenho muitas dúvidas.
Nasci no seio de uma família onde a mulher não tinha nenhum valor, cresci a vê-las ser maltratadas no seu corpo e na sua dignidade. Nunca me habituei a esta forma de ver a mulher, e sempre soube desde muito nova que não era isto que queria para mim e haveria de lutar sempre contra este espírito de posse masculino.
As mulheres da minha família, principalmente a família paterna, eram mulheres infelizes, trabalhavam a terra, enquanto carregavam no ventre gravidezes sucessivas, nunca paravam a seguir aos partos, não tinham voz activa nas decisões importantes e algumas delas eram espancadas. Felizmente a minha mãe nunca foi espancada, mas era uma escrava da casa, do marido e sem vontade própria
Sempre me revoltei com estes atentados a dignidade humana.

Aos 10 anos o meu pai com a sua prepotência e ignorância impedia-me de seguir os estudos, mesmo a pedido de algumas pessoas professores da escola primária, para as mulheres não tinham que estudar, tinham que trabalhar.

Tive assim o meu primeiro desgosto e a revolta de sentir os meus sonhos esvoaçarem para o futuro.
Aos 18 anos deixo a aldeia em que nasci, a família, pessoas que amava e enfrento sozinha e sem a bênção de ninguém a vida na grande cidade de Lisboa. Impedida de voltar a entrar na casa dos meus paus, criticada por toda uma comunidade, era preciso encarar a vida de frente e lutar, avançar e mostrar a todos que eu tinha tudo nas mãos para não ser aquilo que todos tinham premeditado, que eu seria mais uma desgraçada na grande cidade.

Fui empregada domestica, estudei de noite, e fiz a escola secundaria em 5 anos. E lutei para me manter uma mulher digna.
Foi nesta luta e no gosto pela escrita que hoje ando a procura palavras para falar da luta destas mulheres cujo silêncio lhes foi imposto durante toda uma vida.

Luto todos os dias para mostrar que somos mulheres. mas também somos seres humanos, com desejos, vontades e sonhos. Que merecemos respeito da parte dos homens,maridos,filhos ou amigos.

Deparo-me agora com uma outra realidade que me incomoda e que tento combater todos os dias.
a incompreensão por parte das outras mulheres pela liberdade com que conduzo a minha vida.

Ou seja, para ter tempo para ler, escrever, ter o meu próprio espaço, tenho um marido que partilha as tarefas diárias e tenho ajuda na manutenção da casa.
Mas as mulheres foram educadas a serem elas a tratarem da casa, dos filhos, como se isso fosse
uma obrigação.
Hei-de sempre lutar contra este preconceito venha ele da parte dos homens, ou da parte das mulheres.

Porque dia da mulher, é todo o dia do ano, porque temos capacidade de sermos respeitadas e amadas nas nossas qualidades e nos nossos defeitos,nos nossos sonhos e nas nossas aspirações.

São Gonçalves

sábado, 6 de março de 2010

A Papoila

FRANZ MARC - animal solitário contempla a imensidão

   Tenho horas dentro de mim em que apenas a zanga é capaz de aliviar a dor. Assim, e com uma vontade enorme de ser mau, parti para este escrito como se de um chicote fosse a estalar em corpo pecador. A dor, que até a tinta abalar da caneta era insuportável, passou instantaneamente a perdão. Milagre, pensaria qualquer crente louco por ter de acreditar forçosamente em Deus para sobreviver. Ser jovem é a desculpa vestida de analgésico para todas as parvalheiras construídas. Incrível é que, mesmo os retratos mal guardados, agrilhoados ainda ao passado, foram imagens difíceis de criar: os sorrisos nem sempre são sérios, e as lágrimas correm muitas vezes por ruelas estreitas de alegria.

   Mas não há mal que sempre dure! A morte está por aí! Mais dia, menos dia, e ao contrário da cor que a identifica, o negro vestirá de desespero por saber que também ela morrerá com a vida que leva. Para trás ficarão as palavras escritas, os poemas, as crónicas, as fotos, os gestos, e as últimas peças de roupa penduradas na cruzeta da vida.

   Sou então uma busca do perdão eterno e, no amarelo das paredes, encontro a desilusão do caminho que lhe fez a cor. De um lado a estrada, sinuosa aos olhos de hoje, mas bem lá no fundo ainda vejo os cavalos selvagens da pradaria, e os campos brilharem como papoilas de arroz doce. As mãos estendem-se pelo cabelo livre onde sou capaz ainda de amarrar os sonhos. Sinto apenas um vazio na procura. Deixo-me cair para dentro do mundo, acredito que afinal sou eterno e se os cavalos podem ser livres eu também o poderei ser. Do outro lado, o caminho continua a fazer-se pelo próprio caminho. Descobri tarde que este trilho afinal tem vida própria e os cavalos que eram selvagens são agora mansos, cansados e exaustos de tanto correrem à volta da mesma pradaria. Esgotados pelo cansaço de nunca descansarem.

   Afinal de contas, foram estes grãos de terra livres que criaram todas as papoilas que ainda hoje vivem dentro da minha mente. Não importa dizer o que fazes ou o que tencionas fazer, um dia terás nas mãos apenas o que fizeste. E se essas mãos forem enormes, verás que nada terás dentro delas, e por maior que seja o que quer que tenhas feito, nunca albergará o tamanho da tua papoila.

   Conheço-te desde muito cedo, sei que estarás por aí, sempre me disseste que um dia iríamos acertar as contas da vida. Eis-me então aqui, despido de mãos, e da cabeça nada mais quero. Não mais a responsabilizarei. Será agora apenas o caminho que a própria aprovar. Ao tempo restante deixarei essa vontade de me levar, sei que de lá virá o sossego. Aqui ficarão as lágrimas de um parvo que desperdiçou a sua estrela. A papoila agora seca será guardada entre as páginas de uma história que um dia nasceu selvagem.

José Luís Lopes

LEMBRANDO MIGUEL TORGA

(comentário a um poema de Júlio Saraiva dedicado a rosafogo)

primeiro. declaração de interesses: sou amigo e admirador da Rosa daqui pela sua autenticidade, amizade e pulsão genuína pela poesia. depois conheci a faceta de uma mulher capaz de lutar com armas desiguais contra fantasmas envoltos em capas de livros. com coragem e bravura e sempre armas leais..
depois o Torga - mau feitio, genial, um prémio Nobel por atribuir, e tantos ensinamentos a colher; no conto e no diário então é do melhor da nossa literatura! E não querendo abusar do seu espaço, deixo aqui um poema do seu Cântico do Homem:

SOMOS TODOS POETAS

Porque não queres os versos que te nascem
Como rebentos pelo tronco acima?
Porque não queres a inesperada rima
dos sentimentos?
Olha que a vida tem desses momentos
Que se articulam numa cadência
Tão imprevista,
Que é uma conquista
Da consciência
Não ser um túnel de negação...
Brotam as folhas que são precisas
E outras folhas que o não são."

arlindo mota