terça-feira, 27 de abril de 2010

Há pão neste meu Abril

Vieira da Silva - 25 de abril

O padeiro do meu bairro, homem honrado pelas mãos que há muitos anos dá forma ao pão que chega à minha casa, lamentava-se que tinha perdido o cravo vermelho que, com carinho, tinha aconchegado à lapela da camisa branca pela manhã.

Estava triste, e a cada interrogação dos seus clientes logo se aprontava a dar uma explicação que não era explicação, principalmente para os mais novos.

Chegou a hora do almoço, e na mesa que sustenta a família, que um dia jurei proteger, estava o pão que o meu padeiro fez neste dia especial de Abril. Abri o pão, do seu interior brotou um cravo vermelho. Fez-se Abril em minha casa, afinal, tenho que continuar a comemorar Abril.

Há pão neste meu Abril, mas não há Abril em todos as casas que um dia acreditaram nos cravos de Abril.

25 de Abril de 2010

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ser Poeta - Feliz Aniversário JLL


Ser Poeta

…é querer escrever o que nos corrói as entranhas e na dor da procura, nunca encontrar as palavras certas e adequadas para oferecer ao leitor.

Para mim não é necessário escrever, sinto-as.

Sendo assim nunca serei poeta, nunca consigo escrever verdadeiramente o que sinto.

José Luís Lopes escreveu aqui:
http://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=121769


As tuas palavras nas minhas é um gosto que se vai aprendendo a gostar, tentando na medida do possível, conciliar as diferenças; umas mais adocicadas, outras mais agrestes, mas sempre e sempre com o intuito de com elas fazermos um belo e delicioso banquete, saciando reinos existentes e os que hão-de vir. Serão elas um modo de confraternização, tendo como ponto de partida, a única certeza que há no mundo - a de que somos seres em evolução permanente, e há momentos que já nem a cereja é representativa de coisa nenhuma, porque o bolo, já nasce coberto das mais belas cerejas que o mundo viu.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Primavera dos tempos

Michelangelo Caravaggio 1571 – 1610

Enquanto jovem e já lá vão uns anos, eu, que não me regulava por almanaques oficiais, era irreverente, selvagem, cacto em deserto estéril, vivia em contra ciclo com a natureza, e em defesa das minhas ideias muito próprias. Como todos os jovens, também eu deixei crescer espinhos no meu corpo para defesa do que eu achava que era o correcto. A seiva, essa, dava-a apenas aos que se abrigavam nas minhas ideias. Ser jovem, é a definição mais bela para descrever todas as contradições que viviam dentro de mim; não ter nunca a certeza de haver uma estação do ano certa, viver em constantes mutações com as quatros estações do ano, sem nunca saber qual delas, ocupava os meus sentimentos.

Lembro-me então que caminhava eu, pela minha cidade, ao fim do dia e senti um ventozinho daqueles que raramente se sente. Olhei para o sol e fui invadido por uma alegria única, talvez como se dentro do meu corpo, entrassem mil anjos. Fiquei feliz, assim com uma felicidade que nunca sentira, talvez divina ou quem sabe terrena, mas que eu ainda jovem, desconhecia ser possível sentir. Lembro-me de pensar: é hoje que entra a Primavera! Invadiu-me uma força vestida de sorrisos, e de repente, toda a minha cidade estava vestida de flores, as andorinhas dançavam no ar e eu, corria dentro de mim, de um lado para o outro, sem saber o que procurar. Encontrava-me num estado de pura felicidade. Continuo com a esperança de que esse dia volte a acontecer em mim, a querer sentir a Primavera como senti nesse ano. Foi o único ano em que verdadeiramente percebi que as Primaveras têm um dia que nascem, mas não num dia de calendário.

Há um momento dentro de mim que descobre o dia certo do seu nascimento. Hoje, ao fim do dia, irei dar um passeio a pé, saio com a esperança de poder sentir novamente o sopro desse vento, e se ele não me trouxer mil anjos, não será importante, basta apenas que me traga um anjo, uma flor e uma andorinha. Assim, terei eu, um motivo para fazer deste dia, o dia da entrada da Primavera dentro de mim. E se cacto fui, hoje cacto sou. A diferença, é que no lugar dos espinhos, nascem agora papoilas, e dentro destas, nascem Primaveras de esperança para cada palavra que escrevo.

domingo, 11 de abril de 2010

Uma existência sem duração


(tela de Pieter Claesz)

Para que serve a Arte? Para nos dar a breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a Arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, apõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos.

O selo da eternidade... Que vida ausente essas iguarias, essas taças, esses tapetes e esses copos sugerem ao nosso coração? Além das margens do quadro, sem dúvida, o tumulto e o tédio da vida, essa corrida incessante e vã, exausta de projetos – mas, dentro, a plenitude de um momento suspenso arrancado do tempo da cobiça humana. A cobiça humana! Somos incapazes de parar de desejar, e mesmo isso nos magnífica e nos mata. O desejo! Ele nos transporta e crucifica, levando-nos cada dia ao campo de batalha onde na véspera perdemos mas que, ao sol, nos parece novamente um terreno de conquistas, nos faz construir, quando na verdade amanhã morreremos, impérios fadados a se tornar pó, como se o conhecimento que temos dessa queda próxima não importasse à sede de edificá-los agora, nos insufla o recurso de querer também aquilo que não podemos possuir, e nos joga de manhãzinha na relva juncada de cadáveres, fornecendo-nos até a nossa morte projetos tão logo realizados e tão logo renascidos. Mas é tão extenuante desejar permanentemente... Breve aspiramos a um prazer sem busca, sonhamos com um estado bem-aventurado que não começaria nem acabaria e em que a beleza não seria mais um fim nem um projeto mas se tornaria a própria evidência de nossa natureza. Ora, esse estado é a Arte. Pois essa mesa, eu tive de arruma-la? Essas iguarias devo cobiça-las para vê-las? Em algum lugar, alhures, alguém quis essa refeição, aspirou essa transparência mineral e perseguiu o gozo de acariciar com a língua o sedoso salgado de uma ostra ao limão. Foi preciso esse projeto, encaixado dentro de cem outros, fazendo jorrar outros mil, essa intenção de preparar e saborear um ágape de mariscos – esse projeto do outro, na verdade, para que o quadro tomasse forma.

Mas, quando olhamos para uma natureza-morta, quando nos deliciamos, sem tê-la perseguido, com essa beleza que leva consigo a figuração magnificada e imóvel das coisas, gozamos daquilo que não tivemos que cobiçar, contemplamos o que não tivemos que querer, afagamos o que não tivemos que desejar. Então, a natureza-morta, por afigurar uma beleza que fala ao nosso desejo mas nasce do desejo de outro, por convir ao nosso prazer sem entrar em nenhum de nossos planos, por se dar a nós sem o esforço com que a desejaríamos, encarna a quintessência da Arte, essa certeza do intemporal. Na cena muda, sem vida nem movimento, encarna-se um tempo isento de projetos, uma perfeição arrancada de uma duração e de sua exausta avidez – um prazer sem desejo, uma existência sem duração, uma beleza sem vontade.

Pois a Arte é a emoção sem o desejo.


Muriel Barbery in “A elegância do ouriço”

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A fé dos dias de hoje – Crentes e não crentes

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770) - A Cólera de Aquiles


Houve um tempo em que os cordeiros falavam, pintados em paredes de sangue diziam aos deuses que a vida existia, acreditavam na salvação. As lanças eram os sinais do contraditório, os montes, locais de refúgio para crentes que imaginavam pedras gravadas pela força dos raios.
Cá por baixo, junto dos plebeus, a arte de não pecar confundia-se com a vontade da salvação. Os leões esfomeados do passado são o liberalismo (económico) selvagem de hoje, roubam a dignidade a crentes e não crentes. A “societé” do antigamente vivia em colunas jónicas, como hoje vive em colunas sociais, sempre amigos dos donos das lanças, imperam em sua defesa os mesmos senhores que em tempos perseguiam os que oravam em oposição.
Os escravos de ontem afinal são os de hoje, difere a arena da diversão; esta, hoje, é o instituto de desemprego e formação profissional. No passado, apenas uma religião era capaz de fazer sofrer o pecador inocente. Hoje, estes judeus procuram não só os primogénitos, mas também todos os que nascem marcados pelos sinais do tempo: todos saltarão para o teatro dos sonhos perdidos. Para trás, fica a História, mas a perseguição continua.
Aos leões juntaram-lhe os impostos, as taxas moderadoras, as propinas, a insegurança, a corrupção. Na tribuna de honra, o dedo indicador aponta sempre para a terra. Do pó vieste e para pó voltarás. Pena é que apenas na terça-feira receba o senhor numa casa que já não é minha, é o senhor das penhoras. Páscoa Feliz.

José Luís Lopes