sexta-feira, 4 de março de 2011
INVEROSÍMEL, DIRÃO…
Quase que se esqueceram-se de mim, já estou habituado. Tu foste a notícia e eu sei que não querias. Eles martelaram insistentemente dizendo que morreste só, sem ninguém, vertendo palavras sobre palavras por sobre uma situação que jamais entenderão. Preocuparam-se pela delonga – e chamaram-lhe incúria – por demorarem tanto tempo a encontrar-nos. Bom, verdadeiramente, a encontrar-te, pois a mim quase se não referiram, e sem grande alarido, nem surpresa.
Eles querem lá saber dos anos que vivemos juntos, dos carinhos que trocámos, da atenção que prodigalizávamos constantemente nos mais pequenos gestos. Nunca tive grandes sonhos, nem tu podias tê-los. Tínhamo-nos um ao outro; passeávamos nas ruas naquelas horas em que ainda estavam acordadas. Até ao dia em que com mais vivacidade do que era habitual, me chamaste para o sofá e me afagaste ternamente a cabeça, e perguntaste se me recordava de quando e em que circunstâncias nos havíamos conhecido…e sem me dares ocasião de responder, prosseguiste ininterruptamente, como se quisesses fazer um ajuste de contas contigo própria, mas sempre naquele tom meigo que sempre usavas comigo.
Depois calaste-te, eu pensei que era o cochilar do costume de um corpo fatigado em frente da televisão…afaguei-te à minha maneira, de mansinho, demoradamente. Tu mantinhas-te no teu sono tranquilo. Sim... depois percebi que desta vez era diferente, o teu ronronar diminuíra até cessar, por completo. A quentura do teu corpo já não era a mesma. Eu sabia o que estava a acontecer, nada que não estivéssemos os dois à espera, algum dia haveria de ser. Apesar de saber inevitável, por momentos não soube o que fazer, senão lamber-te quase em desespero, pois, na verdade, nunca estamos inteiramente preparados. Depois, mais calmo, despedi-me com um latido quase inaudível para não perturbar os vizinhos, enrosquei-me bem juntinho a ti, e chamei o sono que veio surpreender-me em pleno devaneio de quando foras buscar-me ao canil municipal livrando-me assim de uma despedida antecipada, injusta, sem ternura…Sim, tu, salvaras-me a vida!
(Assinatura ilegível)
(P.S. esta carta chegou-me recentemente quando os media difundiram à saciedade o achamento de uma velha senhora e do seu cão vários anos depois da seu desfecho, enfatizando a situação da solidão nas sociedades contemporâneas. Não cheguei a apurar se a epístola teria tido algo a ver com este acontecimento…)
arlindo mota
@poema e foto
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Valentim
Valentim, formado em amor, actualmente no desemprego, trabalha a recibo verde numa loja de conveniência. Acordou pela manhã estremunhado, ouvia incessantemente o seu nome na rádio, diziam que atirava setas embebidas de amor. Coisa estranha, ele que tudo sabia de amor nunca tinha aprendido nada do que estavam para ali a dizer. Ainda mais, como não colocavam a falar alguém com conhecimentos da matéria do amor, com canudo, com experiência em amar. Zangado, virou-se para o lado e não foi trabalhar. A loja de conveniência, única no bairro a vender artigos de o dia de namorados não abriu. Não se fez esperar o protesto da população namoradeira, ninguém já sabe namorar sem oferecer almofadas e peluches vermelhas. O desespero tomou conta da multidão. O tempo passava e este é o único dia do ano em que todos podem namorar, amar como nos velhos tempos. Os protestos subiram de tom, não havia tempo para contornar este problema, bem, alguns até sabem fazer almofadas, o que não sabem é dizer as palavras amorosas impressas a dourado nos corações que enfeitam as almofadas e peluches. Valentim levantou-se, foi trabalhar com um sorriso, esqueceu o trabalho precário, esqueceu os sacrifícios que o levaram até ao dia de hoje, ele sabe que para muitas mulheres, este é o único dia que são amadas com ternura, sabe que este é o único dia em que as palavras de amor são belas mesmo que escritas em peluches e corações da china e sabe que algumas não mais terão outro dia para se sentirem felizes, desejadas e amadas. Hoje serão deusas, serão deusas como sempre foram.
Hoje é dia de S. Valentim e eu amo-te ainda mais hoje do que ontem
José Luís Lopes
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
BB King / Gary Moore - The Thrill is Gone
Fantástico!
Hoje acordei a viver, viver é bom,
Esta gente constrói-me, fala-me, ensina-me, anima-me, leva-me, assusta-me, diz-me que afinal viver é tão simples, tudo é tão pequeno e tão grande. Hoje tenho uma mão na algibeira e outra no peito, quero ouvir o bater do coração, quero sentir este bater com ritmo, com paixão, com entusiasmo de quem só agora começou a viver. Hoje é o meu primeiro dia de vida. Amanhã quero outro primeiro dia. Quero mais gente assim, gente que me assusta com o belo, quem sabe uma bela poesia.
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Futebol jovem: Onde nasce a vergonha
No sábado fui à “bola”. O meu filho, pela primeira vez faz parte de um clube de futebol, O Maximinense. Nunca fui muito destas coisas da bola para jovens, sempre exigi muito mais dos meus filhos do que andar a correr aos chutos a uma bola, sim, porque isto de “Ronaldos” são meia dúzia de casos, e eu prefiro as certezas do conhecimento adquirido, fruto do esforço de correr atrás dos livros. Com dezasseis anos, no décimo primeiro ano, com notas sempre acima da média, acordei com o meu filho, as regras que determinariam a sua continuação ou não, no mundo do futebol. Sei que o desporto faz falta, mas sei também que é agora o momento mais crítico do seu percurso escolar, e brevemente serão determinantes as décimas para poder entrar num curso que destinará para o bem ou para o mal, o resto da sua vida tanto pessoal como profissional. Nesse momento não haverá “futebóis”, recargas, bolas à barra, nem sorte ou azar, e muito menos a desculpa por o árbitro não assinalar a grande penalidade mais que evidente. Todos sabemos como vai ser o seu jogo no mercado de trabalho, e há uma grande possibilidade de ficar no banco dos desempregados a engrossar as listas de jovens licenciados à procura do primeiro emprego.
Mas, preocupações para os pais existirão sempre, com mais ou menos emprego, e como Pai que sou, resolvi apoiar o meu filho, dizer-lhe que não é apenas no sucesso dos seus estudos que estou a seu lado, mas também no prazer dos tempos livres a que tem todo o direito pela sua conduta na vida escolar, e por isso, fui vê-lo jogar.
Entrei no campo, felizmente ainda não se paga para ver os miúdos jogar, o nosso Primeiro ainda não se lembrou de mais esta fonte de receitas para ajudar a pagar o défice. Sentei-me calmamente na bancada de cimento, mais ou menos a dois metros do relvado, e ao centro do rectângulo, com a claque do Realense a uns dez metros à minha direita. Supostamente os adeptos da casa estariam à minha esquerda.
O jogo começa a desenrolar-se, no mesmo instante que a bola começa a saltitar um sujeito no banco do Realense (quis me parecer que talvez fosse o treinador), berrava com quanta força tinha nos pulmões. Pensei que o pobre homem, a todo o momento poderia sucumbir de uma qualquer síncope pulmonar, fiquei preocupado! Mas até aí tudo bem, o dito senhor deveria saber o que estava a fazer. Para meu espanto, e que grande espanto, o treinador, insultava os seus jogadores de todos os nomes e mais alguns. Ficou-me nos ouvidos quando em pose de MISTER o sujeito disse: - ó paneleiro …, qualquer coisa mais, sem valor futebolístico. Um pequeno exemplo insignificante, para a linguagem em constante ligação directa aos piores vocábulos que o Mister tinha em algibeira, para fazer subir o rendimento dos seus pupilos.
Não quis acreditar no que estava a ver e a ouvir! Era demais para um Sábado de sol, como aqueles em que antigamente as esposas ficavam a fazer tricô nos carros sem medo de serem assaltadas, enquanto os maridos assistiam aos jogos de futebol. Bons tempos estes da minha juventude.
Voltando à realidade, interrogo-me: Mas é um sujeito destes treinador de jovens? O Mister, como diz o meu filho? É com este senhor que os pais deixam os seus filhos treinarem semana após semana? Pensei e falei para com os meus botões: O meu filho, nem um minuto ficaria ao lado daquele “treinador”. Desporto juvenil (e não só) não é isto! Um sujeito armado em Mister, que possivelmente nunca conseguiu treinar uma equipa da regional, é agora o “exemplo” de um grupo de jovens, e completamente tresloucado chega a um lugar público, onde há mães, irmãs, amigos ou seja lá quem for, e liberta todas as frustrações de uma vida, armando-se em treinador duro, daqueles que está convencido que é com aquela linguagem que faz homens de barba rija. Senti vergonha e não queria acreditar que o sistema permita que alguém com aquela conduta esteja à frente dos seus jovens.
Mas o mais grave, é que havia uma “claque” de Real, possivelmente composta por pais de alguns miúdos, que para que o seu Mister não se sentisse sozinho, insultava o árbitro e o juiz de linha, com todos aqueles adjectivos que o futebol já nos habituou. Nem queria acreditar, como é possível que os pais dos miúdos tenham um comportamento pior do que o seu “Mister”? Como não consegui entender, imaginei que talvez estes paizinhos também treinem com o dito Mister durante a semana, para que depois nos jogos estejam todos em sintonia, e não destoar do cômputo geral do “bom desportista” que se vê nos nossos campos de futebol. Não tenho dúvidas que o Real tem uma “grande equipa” daquilo que não se deve ter no desporto. Mister e claque podem chegar longe e levar o nome da sua terra à glória. Diria mesmo que já atingiram um feito: ao fim de duas jornadas, já estão no jornal. Depois, dizem que os miúdos agridem os professores, insultam os colegas, e tem linguagem imprópria, não me admira! Diria mesmo que com um Mister assim, todos os miúdos podem tirar vinte à disciplina de português, e quando algo correr mal na sua vida profissional, num futuro próximo, podem sempre recorrer aos métodos do “Mourinho”, do Realense, para resolverem um qualquer diferendo ou até incentivar um amigo e mais tarde os seus filhos. Resta-me dizer, que os miúdos em campo, deram uma lição aos adultos que estavam na bancada, as duas equipas foram brilhantes, em futebol e educação. Quanto ao árbitro e seus adjuntos, bem! Reconheço que deve ser muito duro andar no meio desta selvajaria. Eu, garanto-lhes que saía do campo, entregava o apito a um dos paizinhos, e mandava-o arbitrar. Tenho a certeza que não o saberia fazer. Se mandasse talvez os mandasse arbitrar como trabalho comunitário, ou então obrigava-os a frequentar um curso intensivo de como ser pai e dar o exemplo aos filhos em noventa minutos de desporto. Agora percebo muito do que vejo acontecer nos nossos estádios de futebol. Percebo porque estão vazios, e o porquê das cenas vergonhosas que passam, e entram pelas nossas casas. Só não entendo é porque a Associação de Futebol de Braga, ou quem de direito que coordena este sector, não actua e mete ordem nesta ordinarice. Independentemente da sua formação futebolística, com curso ou não de treinador, o importante é que prevaleça os princípios básicos da boa educação, sendo este, um complemento aquela que é dada pelos pais, pelos professores e toda a comunidade educativa que os acompanha.
É necessário um presidente de um clube com responsabilidade, saber que é da sua responsabilidade dar bons exemplos aos jovens da sua freguesia, e no mínimo, uma comunidade que não deixasse cair os seus filhos nas mãos de um pseudo-treinador, mal-educado, e incapaz de ajudar a construir homens válidos para o futuro.
Já disse ao meu filho que não mais voltaria a ir ao campo, e no meu caso, nem necessário é a direcção pedir para fazer boicote aos jogos. Não fui capaz de impedir o meu filho de continuar a jogar o seu futebol, o treinador do Maximinense portou-se dentro dos parâmetros do que deve ser um Mister de miúdos, mas em boa verdade vos digo; se o treinador fosse por acaso o do Realense, aí era certo, que o meu filho nunca mais entrava no clube enquanto aquele senhor por lá permanecesse.
PS. Não quer dizer que do lado do Maximinense não houvesse ruído. Houve! Mas graças a Deus apenas o que é “normal” num campo de futebol. Para a história ficou o resultado: Maximinenese – 0, Realense – 1, o que seria se tivessem perdido? Nem quero imaginar.
José Luís Lopes
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Zero
O capitalismo também se apresenta em lata, e agora, para decepar os resistentes, nasceu a zero, zero calorias. A Coca-Cola conquistou o mundo da escrita, as palavras tombam embriagadas de cafeína. O artista não dorme, devassa a noite em glosas marginais. Contorce-se o papel em mãos geladas. Amanhece. Solta-se o dia, e todas as palavras ensopadas, ensonadas e encravadas organizam-se em música. Começa a Tocata e fuga em ré menor, Johann Sebastian Bach. Saia um expresso rápido por favor, tenho o carro mal estacionado e um pacto de estabilidade para fazer cumprir.
José Luís Lopes
sábado, 4 de dezembro de 2010
O palhaço que não ria
Januário acabara de se sentar na mesma pedra que durante anos com ele escutava o silêncio do rio. Era ali, que todas as manhãs recebia o nascer do sol e com ele as vestes de mais um dia, igual a todos os que deixou para trás.
Um homem, que todas as noites pintava o rosto, subia ao palco e oferecia gargalhadas, as crianças vibravam, os adultos perdiam a noção do tempo envolvidos nas hilariantes palavras que de improviso o palhaço largava entre tombos e cambalhotas atribuladas.
O sol despia os raios nas serenas águas a deslizar pelas margens que agora estavam adornadas por cimento, construção humanas que reinventaram a aparência desta paisagem. A transparência do rio já não era hoje o que foi outrora, mas os sons eram os mesmos, melodia que conhecia os timbres do coração deste solitário homem. Quarenta anos, são muitos dias muitas horas no mesmo navegar.
A imagem de Elvira estava gravada nas correntes do rio, assim como as últimas palavras que trocaram com os rostos salgados e os lábios húmidos de um longo beijo…
- Porque partes tu?...Fica, é aqui que o futuro te espera e a felicidade está esboçada nos rostos rubros ciosos de partilha.
- Do lado de lá do oceano estarei sempre a escutar os mesmos sons do mar, contemplarei os abraços fogosos da areia nos dias de tempestade marítima. Olharei o sol nascente e o teu sorriso será o alimento do meu destino. – Respondeu Elvira escondendo no sótão da alma a tristeza e revolta desta viragem do destino.
- Não voltarás, e eu não irei…é aqui que distribuo felicidade, é aqui que tenho o coração acorrentado…o destino é um traço que não se apagará mas que será ténue em todas as auroras, o teu rosto será a utopia de um mero vendedor de sonhos que o seu sonho não pode definir…
A jovem apertou ainda com mais força as mãos do seu amado, beijo-lhe os lábios…e correu, correu sem deixar que o olhar voltasse atrás!
Estas imagens eram a película infindável dentro do âmago de Januário que cumpria o ritual da solidão em todos os segundos da sua existência desde o tempo que o vento lhe limpou as faces. Não chorava…mas também não ria, havia esquecido como rasgar os lábios em sã alegria.
Contudo assim que o seu olhar encontrava uma imagem humana, sorria, vociferava palavras de ânimo e atirava aos amigos os melhores gestos de felicidade.
Pelas ruas, já se movimentavam os quotidianos do dia, os carros avançavam rapidamente e as pessoas atropelavam a pressa em correrias que Januário conhecia no rigor da sua sensibilidade apurada pelo silêncio que vestia sem urgência…
Ergueu-se.
-Até amanhã! – Vociferou com o olhar voltado ao sol.
Então caminhou em direcção a casa onde iria preparar mais um espectáculo para essa noite…As luzes da ribalta aguardavam mais um rufar dos tambores, os holofotes intensificavam-se em cada cadeira que se preenchia, nenhuma ficava vazia sempre que os seus pés pisavam o palco!
Um homem, que todas as noites pintava o rosto, subia ao palco e oferecia gargalhadas, as crianças vibravam, os adultos perdiam a noção do tempo envolvidos nas hilariantes palavras que de improviso o palhaço largava entre tombos e cambalhotas atribuladas.
O sol despia os raios nas serenas águas a deslizar pelas margens que agora estavam adornadas por cimento, construção humanas que reinventaram a aparência desta paisagem. A transparência do rio já não era hoje o que foi outrora, mas os sons eram os mesmos, melodia que conhecia os timbres do coração deste solitário homem. Quarenta anos, são muitos dias muitas horas no mesmo navegar.
A imagem de Elvira estava gravada nas correntes do rio, assim como as últimas palavras que trocaram com os rostos salgados e os lábios húmidos de um longo beijo…
- Porque partes tu?...Fica, é aqui que o futuro te espera e a felicidade está esboçada nos rostos rubros ciosos de partilha.
- Do lado de lá do oceano estarei sempre a escutar os mesmos sons do mar, contemplarei os abraços fogosos da areia nos dias de tempestade marítima. Olharei o sol nascente e o teu sorriso será o alimento do meu destino. – Respondeu Elvira escondendo no sótão da alma a tristeza e revolta desta viragem do destino.
- Não voltarás, e eu não irei…é aqui que distribuo felicidade, é aqui que tenho o coração acorrentado…o destino é um traço que não se apagará mas que será ténue em todas as auroras, o teu rosto será a utopia de um mero vendedor de sonhos que o seu sonho não pode definir…
A jovem apertou ainda com mais força as mãos do seu amado, beijo-lhe os lábios…e correu, correu sem deixar que o olhar voltasse atrás!
Estas imagens eram a película infindável dentro do âmago de Januário que cumpria o ritual da solidão em todos os segundos da sua existência desde o tempo que o vento lhe limpou as faces. Não chorava…mas também não ria, havia esquecido como rasgar os lábios em sã alegria.
Contudo assim que o seu olhar encontrava uma imagem humana, sorria, vociferava palavras de ânimo e atirava aos amigos os melhores gestos de felicidade.
Pelas ruas, já se movimentavam os quotidianos do dia, os carros avançavam rapidamente e as pessoas atropelavam a pressa em correrias que Januário conhecia no rigor da sua sensibilidade apurada pelo silêncio que vestia sem urgência…
Ergueu-se.
-Até amanhã! – Vociferou com o olhar voltado ao sol.
Então caminhou em direcção a casa onde iria preparar mais um espectáculo para essa noite…As luzes da ribalta aguardavam mais um rufar dos tambores, os holofotes intensificavam-se em cada cadeira que se preenchia, nenhuma ficava vazia sempre que os seus pés pisavam o palco!
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
"Realejeiro"
Hoje acordei com uma caixa de música na cabeça. Depois de um forte esforço supra-matinal lembrei-me do realejo. A questão que se curvou sobre o meu ar ensonado do antes do pequeno-almoço é saber que nome se dá ao homem que toca o realejo. Nada me ocorreu na memória colectiva, recorri com a destreza possível das manhãs à memória selectiva e o resultado foi o mesmo, mais um nada. Depois de farto o estômago, cansado da longa travessia do vazio da noite, com um “petit dejeuner” leve, mediterrânico pobre, pão com manteiga magra e uma meia de leite directa, esta tirada numa Nespresso do famoso actor George Clooney, e uma almoçadeira “xpto” com os dizeres: “Breakfast”. Percebi o motivo porque se fala tanto na globalização, o estrangeirismo está por todo o lado, faltou-me o Financial Times ao lado da tosta, e aquele ar de “self-made man” que a todo o momento arranca para o mundo dos negócios amarrado a “long cashmere coat”, “paraguas” e “petite serviette en cuir noir”. Não aguentei a pressão da ignorância e abalei em busca do conhecimento, tem que haver um nome para o homem que toca o realejo. Parti das premissas filosóficas do geral para o particular: - Se os homens dos relógios são relojoeiros, logo os homens dos realejos são realejeiros. Não me suou muito bem! há nesta palavra um paladar avinagrado, aziumado, assim… tipo iogurte fora de prazo. Percebi, talvez tardiamente, que um homem que toca uma caixa de música nunca poderia ser realejeiro, impossível, esta palavra não tem dignidade, estaleca, não é arrebatadora, ninguém ouve um realejeiro por muita arte que o homem da música tenha a dar à manivela, (isto pensava eu, verão que vou mudar de ideias). Apenas os nomes simples perduram na história, Manel, Maria, tia Alzira, Tio Tone, Arménio, Quim, Sr. Silva ou então um com “pedigree”, com sangue azul, um nome que só de olhar absorva toda a história dos antepassados, estou por exemplo a lembrar-me dos Pauliteiros de Miranda, o exemplo não podia ser melhor, o nome diz logo que estes gajos são do tempo do Viriato, e os paus são apenas um pormenor, esta região tocaria outra coisa qualquer, o seu DNA é daqueles que não engana, e a música apareceria nem que fosse a bater com calhaus em latas de salsichas. Pensei então que o nome mais apropriado para o homem do realejo seria realejumúsico. Se este homem faz música tem toda a lógica este nome. Mas a questão é saber que tipo de música o homem do realejo toca e se isso poderá influenciar o nome da sua arte. Imaginei um realejeiro a tocar jazz, bem, o nome sofria logo uma mudança substancial, para cativar os aficionados do jazz o melhor seria o realejeiro chamar-se ou “realjazemúsico”, isto é, se este tivesse importado a caixa de New Orleans e a música produzida pela manivela permitisse imitar a trompete do Louis Amestrong. Depressa compreendi, que este nome ligado ao jazz era bastante castrador para os realejeiros da música popular, os ditos pimbas, e que nunca ouviram jazz. Ficariam ligados a uma música influenciada pela comunidade negra, coisa que a nossa terra não está preparada, por aqui o fado ainda é que dita as regras. Mas ainda há os nórdicos, os homens de cabelo loiro e olhos azuis, desgostosos com a conotação do instrumento à cultura do cabelo encarapinhado e pele escura, é certo e sabido, que este gajos emproados não iriam gostar, e o mais certo é o aparecimento de um movimento anti-realejo. Estou perante um caso daqueles que em linguagem popular se pode dizer de bicudo. Vou ter que ter muito cuidado com as tendências musicais, não posso castrar a clave do sol, o sol quando nasce é para todos, logo todas as tendências musicais tem que se rever neste novo nome. Não sou homem para desistir de nada, mas depois de várias pesquisas “científicas” on-line, enciclopédia Luso-Brasileira, dicionários de várias línguas incluindo o chinês, o marroquino, romeno e o dos PALOPs, e outros meios que dispunha para levar a cabo esta espinhosa tarefa, concluí que afinal o nome que a linguística portuguesa construiu para este fazedor de música “box” é afinal um nome bem simples: O Homem do Realejo! Abriu-se uma brecha na história para mim, posso finalmente criar um nome de um fazedor de arte musical com manivela, uma arte milenar com um novo nome para o homem criador de sons perfeitamente ligados entre si, quer isto dizer, música. Este novo nome terá a dignidade que há muito tempo é devida a estes homens da música. Será um nome próprio, capaz de ser sindicalizado, e suficientemente aglutinador para levar em frente a sua primeira associação de classe, suficiente forte para defender os seus interesses e capaz de lhes devolver a dignidade que nunca tiveram. Estou espantado comigo, acabei de fazer uma regressão histórica, voltei às lutas dos trabalhadores do século XIX em Inglaterra, à revolução das massas, dos direitos do operariado, do movimento sindical, da conquista do salário justo, das desigualdades enfim, a luta do proletariado contra o grande patronato. Estou estarrecido, pela primeira vez faço parte da história, o meu nome será a Grândola Vila Morena dos realejeiros, sou a revolução de uma classe. A partir de hoje o Homem do realejo será o realejeiro com toda a dignidade que merece. Estará ao mesmo nível dos relojoeiros, sapateiros, pistoleiros, politiqueiros. Sinto-me satisfeito, não por mim que sou um insatisfeito compulsivo, sinto-me satisfeito pelos realejeiros de todo o mundo, e sei que não são poucos. Mais tarde ou mais cedo a humanidade perceberá a importância dos realejeiros no desenvolvimento da arte musical neste novo mundo global. Mas importante mesmo, é este acordar louco de um louco como este que vos escreve com prazer.
José Luís Lopes
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