quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Nietzsche Chorou e eu também



Se as minhas lágrimas falassem diziam que o isolamento terminou, terminou com a escrita.

Não me perguntem como fui capaz de ser infiel com tanta gente dita próxima, o meu isolamento era tudo que tinha de seguro. Sei que um dia, alguns daqueles que pensavam conhecer-me, vão dizer que me prostitui. Eu que já nem idade tenho para tal, o meu corpo já reclama outras santidades, menos enérgicas. Quando nos prostituímos por necessidade deve haver clemência, piedade por quem molesta o seu próprio corpo. Eu precisava de me proteger das palavras faladas, só as sabia pensar e o medo agiganta-se dentro de mim.

Mas não quero saber, nada do que possam pensar me interessa, nunca me interessou verdadeiramente, sempre senti que não gostávamos das mesmas coisas. Agora, espero pacientemente pelo dia em que me arrastarão pelas palavras mal escritas, para o mesmo local onde Maria Madalena foi atacada pelos intocáveis. Rameira, vendia-se aos homens; eu vendo-me ao sonho de saber escrever os sonhos, e por isso, também punível pela desonra dos belíssimos doutos que comigo trajaram outros saberes eruditos, mas mais terrenos.

Mas para as pedras arremessadas tenho a arma da indiferença, jamais estas farão ruído ao encontrar o meu corpo ainda dorido, a resistência acabou, agora as lágrimas podem falar.

O que estes próximos não sabem é que me prostitui com eles. Não sabem que nos meus silêncios, eles, os próximos, ajudaram-me a derrotar a solidão. E mesmo naquela alegria temporária criada no meio de momentos efémeros, acabei por dar a conhecer ao meu corpo tudo aquilo que não queria ser. Eles tinham tanta coisa que eu nunca quereria ser, nem o conseguiria. Por mais que tentasse, nunca seria assim, e juro que tentei tantas vezes ser assim, como eles. Os próximos eram indiferentes ao mundo falado, o silêncio era pensado no meio de banalidades, e o sentimento era até usado como chacota para aquele que desafiasse falar.

Todos já eram homens, todos com responsabilidades familiares, com cargos profissionais, mas todos esquecidos das responsabilidades ensinadas pelos valores da amizade, que eu conhecia, e eles em tempos também. Mas depois, já de noite, sozinho com o meu sonho, percebia que havia dentro de mim um passado que reclamava verdade, um sentir que me magoava em dobro toda a alegria profana que dia a dia ia consumindo.

Amigos loucos, acabados de chegar à vida e já sem interesse por ela, piores que um buraco negro intergalático. Sugam a própria existência do seu próprio tempo, loucos, não me canso de o dizer. Estes loucos esqueceram depressa que o seu tempo só perdura com ideias, mesmo que fosse um tempo feito de ideias banais. Loucos, esqueceram o diálogo e a humildade de aprenderem com o silêncio necessário para ouvir o silêncio de quem os acompanha.

Há noite, sempre perguntava aos meus sonhos se algum dia seria capaz de chorar livremente, e nos dias que não conseguia sonhar com o meu sonho livre, chegava então a dúvida, esta que sempre emerge nos momentos que precisamos de um carinho. Triste realidade que acompanha sempre a solidão, a dúvida. Esta maldita veste-se sempre a rigor para me importunar com dor, esta, muitas vezes maior que o sonho.

Salvo-me então da dúvida e dor repetindo o célebre pensamento do filósofo e matemático francês Descartes "Eu duvido, logo penso, logo existo". Passei então a amar Descartes e sempre que a dor ultrapassava o limite da racionalidade, sempre que a dor me atirava para a porta onde apenas se pode sair, invocava-o. Este não era o meu mundo, não poderia continuar a dividir-me entre dois mundos que não sabiam coabitar.

Já dizia Platão que havia dois mundos: um onde havia ideias eternas e outros onde se fazia cópias das ideias. Não havia ideias sensíveis, porque as ideias sensíveis são belas e participam no belo.

Eu não podia continuar a caminhar nas brumas da incerteza e, se por um lado queria ser o homem de sucesso, dinâmico, líder reconhecido pelo meu trabalho, capaz de do nada tudo conseguir executar, mesmo que para isso tivesse que abdicar das mais nobres convicções que a alma tinha aprendido, por outro lado, o sonho reclamava com força a revolta das palavras ostracizadas. Estas queriam definitivamente ser ouvidas pela força da escrita. Eu, sabedor de que esta seria a única forma de um dia fazer justiça aos silêncios ignorantes, percebi que não mais seria capaz de travar este sonho de ver as minhas lágrimas a falar.

Bem dizia este bom homem, Platão, e com razão, que “A verdadeira realidade não nos é dada pelos sentidos, mas só pode ser intuída através da razão, e está no mundo das ideias” Então, mais uma vez, digo que se as minhas lágrimas hoje falassem recordar-me-iam o medo de existir. Eu pedia-lhes que perdoassem. Dobrar-me-ia a seus pés, pedia-lhes absolvição, apanhava todas as lágrimas vertidas e devolvi-as para que estas pudessem ser derramadas novamente, agora com o sal da vida.

Este medo, meu aliado e amigo, servia-me a vida a conta-gotas, deixava-me ver para além dos muros em segurança e sempre que o temor ganhava forma, trazia-me para a segurança de um medo enorme e protector. Inculto para lá daquele muro, deixei-me ficar na segurança do meu medo onde o saber era apenas meu.

Ideias, debate e aprendizagem eram feitos em silêncio, comigo mesmo, nas lutas nocturnas, em que o homem de fé repetia que um dia as lágrimas seriam uma torrente de força em margens de saber. Mesmo que esse saber fosse diminuto, não me interessa, sei pelo menos que ficaria por aqui, por esta gente que é minha e que um dia há-de ter um pouco mais de mim.

Todos temos um motivo para responder ao que não fomos capazes de aprender. Existe um próprio saber dos que nada sabem e que só estes sabem responder. Esse não saber, muitas vezes, amarra-se às palavras dos que sabem.

Compramos um livro, ficamos então a saber o que já todos sabem, que é apenas o que o livro nos diz, mas não somos capazes de produzir saber. Ficamos a saber mais, é bom, mas não nos torna especiais pelo simples facto de sabermos mais que outros. Pelo contrário, dá-nos a responsabilidade de ensinar o que afinal sabemos à custa de outros.

Para os que não aceitam isto, fruto de uma cegueira medíocre ou então mais grave, de uma ambição desmedida, onde os olhos comem mais que a barriga, mais cedo ou mais tarde tudo e todos se voltarão contra eles. Não lhes dirão muito, esquecem-nos, deixam de os ouvir e passado algum tempo serão apenas espectros de um tempo que já não existe.

Resta-nos então acalmar e explicar às lágrimas que este sofrimento não foi escolhido, crescemos assim e, na pior das hipóteses, escolhemos mal as companhias com que crescemos. Dizemos-lhes então: não sei mais apenas porque quero, antes saber o que todos sabem. Quero antes ser um enciclopédico de outros do que um pequeno livro de mim, onde ninguém vai querer saber deste meu medo. Não quero saber porque quero ser criança toda a vida. As crianças não tem obrigação de saber, são queridas por isso mesmo, porque só sabem ler a bondade que cai dos olhos adultos. Não quero saber apenas porque eu não fui talhado para saber, não sou expedito na escrita, na leitura, na criação do próprio saber, sou apenas um conversador, um fraco ouvinte por tantas perguntas querer fazer.

Sou, afinal, apenas um pouco saber de coisa nenhuma, sou um daqueles que fazem a vida ser igual todos os dias. Para os que querem excelência (porque pensam que a têm), eu sou apenas aquele que faz número. Como eu sabia que estavam errados! Mas o medo de as lágrimas me caírem era, afinal, o meu maior receio.

Se eu as tivesse deixado cair, sempre lhes poderia ter dito que eles não eram a excelência, a excelência requer trabalho, entrega e principalmente bondade. Eles não tinham bondade para serem excelentes pessoas, obviamente. De certa forma, eu também traí os meus amigos, eu não fui capaz de ser como eles. Estes meus amigos, ou antes próximos, souberam adaptar-se a uma maioria que marca o ritmo do mundo.

Eu, pelo contrário, chegava a casa sempre cansado de os ouvir, refugiava-me nos sorrisos ou nas gargalhadas que sempre fui capaz de produzir a partir de um nada qualquer, depois jurava que era a última vez que os tolerava, e que no dia seguinte tudo ia ser capaz de dizer para os chamar a atenção. Pobre rapaz enganado, quando tentava, ficava com a nítida sensação que não tinha arte nas palavras. Descobri mais tarde que, afinal, eles é que não tinham arte na audição, sôfregos pelo poder que nunca tinham tido. Refugiei-me no trabalho, seria então o sucesso deste o inibidor das emoções colhidas. Mentira, a noite trazia sempre as lágrimas e se um dia as retinha, no dia seguinte, vinham acumuladas.

Também estes amigos me faziam crer que eu poderia ser como eles. Acreditar, era absolutamente necessário, refugiar-me no sucesso que as mãos iam produzindo a qualquer preço. Era o estímulo para dizer ao sentir que tudo o resto eram apenas devaneios de uma mente jovem que, mais cedo ou mais tarde, encontraria o caminho correcto da vida.

Assim caminhei até ao dia em que percebi que também eu teria direito a uma pequeníssima parte das minhas ambições. Pedi-lhes então que, uma vez de longe a longe, eu também tivesse direito a esse pequeno momento. Pedia-lhes tão pouco, apenas uns segundos, apenas um minuto dos tantos minutos que entregava em troca de nada. Quase morri, não porque me tivessem respondido a dizer que não, mas apenas porque continuavam a não ouvir, continuavam a não perceber que não éramos todos iguais.

Hoje não há um dia que não pense nestes meus “amigos”, os próximos. Sei que estarão comigo toda a vida, mas sei que jamais seremos como fomos, amigos. Sei que passei momentos únicos com estes…, sim, amigos, momentos onde os abracei com a certeza de que ficariam para sempre ao meu lado. Eles eram eu. Naqueles momentos eu teria dado a minha vida por qualquer um deles, amava-os como se fossem mais uma extensão do meu corpo. Mas, afinal de contas, esses momentos eram apenas especiais para mim.

Só eu sentia aquilo que mais nobre há num homem, a camaradagem, a amizade maior do que qualquer livro ou tratado existente na terra, só eu era suficientemente tolo para acreditar no que, afinal, apenas existe na adolescência, amigos gémeos.

A idade continuou a crescer, madrasta, não espera pelo homem, e um dia dei comigo só, apesar de todas as companhias. E o meu modo secreto de contornar a solidão ruiu, deixei-o cair como um castelo de cartas. Tudo era apenas uma ilusão, vivia dentro de mim sem eu saber, e nada poderia fazer até perceber que o meu corpo tinha envelhecido e a ilusão tinha, afinal, um tempo na vida, alimentava-se da juventude.

Se as minhas lágrimas pudessem falar, diziam que finalmente estavam livres, finalmente posso escolher o local onde as derramar, e estas já nunca mais são de tristeza, são de alegria por serem livres, livres de preconceitos. “O isolamento apenas existe no isolamento e uma vez partilhado, evapora-se”. Sempre seria amigo daqueles que muitas vezes digo próximos. Serei amigo porque não posso fazer das diferenças uma causa para os rejeitar no meu coração. Prefiro então partir, deixá-los, permitir-me ganhar eu uma nova felicidade, com outros amigos ou mesmo apenas sozinho. Sei que é possível e, ao mesmo tempo, reencontrar a felicidade por ver os meus amigos felizes sem a minha presença, sinal que afinal a felicidade está em dois estados de alma.

Com o tempo e a minha partida, tornei-me estranho para os meus amigos e sempre que, por perto, partilho o mesmo tempo e espaço com eles, desejo o meu novo tempo, aquele que eu reinventei sem eles. Também eu agora sei que existem dois navios com rumos diferentes, com destinos diferentes.

Meus queridos amigos…

José Luís Lopes



1 comentário:

  1. Simplesmente fantástica a leitura deste texto. Muito bom mesmo.

    Uma viagem pelos cantos que a vida empresta a um homem, que na solidão encontra as palavras certas que irão ao encontro de outras que lhe darão a plena confiança num mundo que se redescobre aos poucos. Nesse mundo, existem pequenas diferenças que se assemalham a catástrofes, que vão peneterando o Ser até à extinção das ideias que o caracterizaram até um dado momento da sua vida. Aí fará uma nova retrospectiva e verá que afinal há na postura que sempre o manteve, uma correlação com o tempo. Será ele sempre manipulável pelas variações caracterizadas ou não pelas mudanças. Serão estas mudanças que remetem o ser para sua forma original e o trará renovado
    Quase sempre

    beijo


    Dolores Marques

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