domingo, 11 de abril de 2010

Uma existência sem duração


(tela de Pieter Claesz)

Para que serve a Arte? Para nos dar a breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a Arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, apõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos.

O selo da eternidade... Que vida ausente essas iguarias, essas taças, esses tapetes e esses copos sugerem ao nosso coração? Além das margens do quadro, sem dúvida, o tumulto e o tédio da vida, essa corrida incessante e vã, exausta de projetos – mas, dentro, a plenitude de um momento suspenso arrancado do tempo da cobiça humana. A cobiça humana! Somos incapazes de parar de desejar, e mesmo isso nos magnífica e nos mata. O desejo! Ele nos transporta e crucifica, levando-nos cada dia ao campo de batalha onde na véspera perdemos mas que, ao sol, nos parece novamente um terreno de conquistas, nos faz construir, quando na verdade amanhã morreremos, impérios fadados a se tornar pó, como se o conhecimento que temos dessa queda próxima não importasse à sede de edificá-los agora, nos insufla o recurso de querer também aquilo que não podemos possuir, e nos joga de manhãzinha na relva juncada de cadáveres, fornecendo-nos até a nossa morte projetos tão logo realizados e tão logo renascidos. Mas é tão extenuante desejar permanentemente... Breve aspiramos a um prazer sem busca, sonhamos com um estado bem-aventurado que não começaria nem acabaria e em que a beleza não seria mais um fim nem um projeto mas se tornaria a própria evidência de nossa natureza. Ora, esse estado é a Arte. Pois essa mesa, eu tive de arruma-la? Essas iguarias devo cobiça-las para vê-las? Em algum lugar, alhures, alguém quis essa refeição, aspirou essa transparência mineral e perseguiu o gozo de acariciar com a língua o sedoso salgado de uma ostra ao limão. Foi preciso esse projeto, encaixado dentro de cem outros, fazendo jorrar outros mil, essa intenção de preparar e saborear um ágape de mariscos – esse projeto do outro, na verdade, para que o quadro tomasse forma.

Mas, quando olhamos para uma natureza-morta, quando nos deliciamos, sem tê-la perseguido, com essa beleza que leva consigo a figuração magnificada e imóvel das coisas, gozamos daquilo que não tivemos que cobiçar, contemplamos o que não tivemos que querer, afagamos o que não tivemos que desejar. Então, a natureza-morta, por afigurar uma beleza que fala ao nosso desejo mas nasce do desejo de outro, por convir ao nosso prazer sem entrar em nenhum de nossos planos, por se dar a nós sem o esforço com que a desejaríamos, encarna a quintessência da Arte, essa certeza do intemporal. Na cena muda, sem vida nem movimento, encarna-se um tempo isento de projetos, uma perfeição arrancada de uma duração e de sua exausta avidez – um prazer sem desejo, uma existência sem duração, uma beleza sem vontade.

Pois a Arte é a emoção sem o desejo.


Muriel Barbery in “A elegância do ouriço”

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