segunda-feira, 8 de março de 2010

Carta a Uma Amiga (homenagem às mulheres da minha família)


(foto Dolores Marques na aldeia de Moção)
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A estabilidade é das coisas mais raras amiga. Gostava de poder dizer-te que para se atingir esse estado, são necessárias muitas mudanças, difíceis mas urgentes rumo a um novo caminho. O conhecimento de nós próprios. Nunca soube o que era estar, ser em plenitude, dar-me sem medos, de sofrer.Lá na minha aldeia, vivi esse estado, essa intensa plenitude. Cantava e o meu eco difundia-se por entre as serranias que me abrigavam do resto do mundo. Olhava o céu e via rasgos no céu azul, aviões que mais pareciam aves gigantes, que me conduziam o olhar a terras distantes, ainda por desbravar. Imaginação não me faltava, quando num fim de tarde depois da escola, com as teorias, os ensinamentos da História de Portugal, me via por essas terras, a viajar rumo ao desconhecido.

Nasci na aldeia de Moção em Castro Daire na Beira Alta, completei lá a quarta classe, assim como os meus dois irmãos, junto de uma avó materna e uma tia. Foram os meus melhores anos - a minha infância. O contacto com a natureza; as montanhas, o rio, os campos, a água a correr pelas pedras da calçada. Uma tia e uma avó que nunca foram á escola, mas que me transmitiram os seus valores, gente simples de trabalho árduo da terra. Com a minha tia Carmo aprendi a comunicar com todos os seres vivos. Falava com as pedras, as plantas, a água, os milhos, os feijões, as couves, os pássaros, o vento, a chuva…. Contava-me histórias umas de encantar, outras de amedrontar. Passavam de geração em geração, aquelas histórias que todos conhecemos. A minha avó Lívia era uma força, dentro da sensibilidade no feminino. Trabalhava a terra e não desistiu nunca de viver a vida intensamente, apesar das dificuldades daquela época, em que ficou só, após a emigração do meu avô para o Brasil. Um homem de nome Herculano que não conheci, por lá ficou e faleceu num acidente trágico. Lembro o ano em que iria regressar, após uma ausência de 28 anos. Foi no inicio do verão, e as expectativas eram muitas. Tudo ficou num vazio, após a notícia da sua morte, em que ardeu o local de trabalho com ele dentro.

A imagem ainda presente, a descer a calçada com os olhares postos em mim. Eu de vestido branco rendilhado até ao joelho, uma fita de cetim preta em forma de laço junto ao peito. A minha mãe fazia os meus vestidos. Gostava deles todos, porque rodava e eles faziam um balão. Até isso me deliciava – este envolvimento que me prendia isolando-me do que me rodeava. Um momento só meu, em que faltou conhecer uma parte de mim. Ficou-se pelo sentir e pela força da minha imaginação.
Cheguei a Lisboa e lembro de perguntar à minha mãe se faltava muito para chegar. Ela responde “já estamos em Lisboa”. Uma tristeza invade-me alma. Lembro o azul do céu, as estrelas nas noites que sobrevoam as serras, o nascer do sol com os seus raios gigantes, o perfume que se solta no fim de tarde, e a minha aldeia sempre…Aqui respira-se…vive-se numa comunhão com a natureza e o seu esplendor.
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Em homenagem à minha avó Lívia, à minha tia Carmo e minha mãe Deolinda.
Um mês quente de Agosto, a aldeia cheia de gente e a minha avó com um brilho no olhar, olhou-me e disse-me, após fazer referência ao movimento da aldeia que a lembrou dos tempos da sua juventude:
" repara que até as pedras da calçada sorriem para nós..."
E lançou um olhar calçada abaixo, depositando-o de seguida no meu, que a olhava pensativa

Dolores Marques

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