sábado, 6 de março de 2010

A Papoila

FRANZ MARC - animal solitário contempla a imensidão

   Tenho horas dentro de mim em que apenas a zanga é capaz de aliviar a dor. Assim, e com uma vontade enorme de ser mau, parti para este escrito como se de um chicote fosse a estalar em corpo pecador. A dor, que até a tinta abalar da caneta era insuportável, passou instantaneamente a perdão. Milagre, pensaria qualquer crente louco por ter de acreditar forçosamente em Deus para sobreviver. Ser jovem é a desculpa vestida de analgésico para todas as parvalheiras construídas. Incrível é que, mesmo os retratos mal guardados, agrilhoados ainda ao passado, foram imagens difíceis de criar: os sorrisos nem sempre são sérios, e as lágrimas correm muitas vezes por ruelas estreitas de alegria.

   Mas não há mal que sempre dure! A morte está por aí! Mais dia, menos dia, e ao contrário da cor que a identifica, o negro vestirá de desespero por saber que também ela morrerá com a vida que leva. Para trás ficarão as palavras escritas, os poemas, as crónicas, as fotos, os gestos, e as últimas peças de roupa penduradas na cruzeta da vida.

   Sou então uma busca do perdão eterno e, no amarelo das paredes, encontro a desilusão do caminho que lhe fez a cor. De um lado a estrada, sinuosa aos olhos de hoje, mas bem lá no fundo ainda vejo os cavalos selvagens da pradaria, e os campos brilharem como papoilas de arroz doce. As mãos estendem-se pelo cabelo livre onde sou capaz ainda de amarrar os sonhos. Sinto apenas um vazio na procura. Deixo-me cair para dentro do mundo, acredito que afinal sou eterno e se os cavalos podem ser livres eu também o poderei ser. Do outro lado, o caminho continua a fazer-se pelo próprio caminho. Descobri tarde que este trilho afinal tem vida própria e os cavalos que eram selvagens são agora mansos, cansados e exaustos de tanto correrem à volta da mesma pradaria. Esgotados pelo cansaço de nunca descansarem.

   Afinal de contas, foram estes grãos de terra livres que criaram todas as papoilas que ainda hoje vivem dentro da minha mente. Não importa dizer o que fazes ou o que tencionas fazer, um dia terás nas mãos apenas o que fizeste. E se essas mãos forem enormes, verás que nada terás dentro delas, e por maior que seja o que quer que tenhas feito, nunca albergará o tamanho da tua papoila.

   Conheço-te desde muito cedo, sei que estarás por aí, sempre me disseste que um dia iríamos acertar as contas da vida. Eis-me então aqui, despido de mãos, e da cabeça nada mais quero. Não mais a responsabilizarei. Será agora apenas o caminho que a própria aprovar. Ao tempo restante deixarei essa vontade de me levar, sei que de lá virá o sossego. Aqui ficarão as lágrimas de um parvo que desperdiçou a sua estrela. A papoila agora seca será guardada entre as páginas de uma história que um dia nasceu selvagem.

José Luís Lopes

Sem comentários:

Enviar um comentário