terça-feira, 21 de setembro de 2010

Amigo

 Amizade - Pablo Picasso

Amigo, bem sei que esta palavra é muito complicada, mas eu gosto demais destas cinco letras juntas. Trouxe-as de um tempo distante, aprendia-as em minha casa, estas palavras têm que ser primeiro aprendidas em casa, para depois poderem ser usadas numa rua qualquer, num café, num encontro de amigos, num jantar, ou até mesmo aqui, no Luso. Interrogo-me o porquê de valorizar tanto estas palavras, e tento encontrar razões válidas para ter a certeza que esta minha satisfação seja eterna. Quero continuar a ter esta palavra Amigo como companhia, assim poderei sempre usá-la para fazer dos meus amigos ainda mais amigos. Esta palavra é realmente fantástica. No passado, a educação era muito mais severa do que nos dias de hoje, mas agora que estou na meia-idade, percebo que afinal, aquela que eu tive não foi assim tão diferente do que os pedagogos escrevem por aí nesses livros, onde quase sempre se distinguem por saberem tudo, mesmo aquilo que não se consegue saber. Mas esta gente é assim, tiram um canudo qualquer e depois fazem da educação uma coisa nova, esquecem-se que tem tantos anos como o homem. O meu Pai apesar de vestir a figura de chefe de família, como na altura se exigia incessantemente, foi capaz de compreender a minha juventude, e conforme eu ia crescendo mais ele me verbalizava que também já tinha sido jovem.

Sempre que tinha oportunidade lá me ia dizendo que a vida era uma coisa séria, e era necessário ter umas quantidades de virtudes para singrar neste mundo sempre complicado. A educação era feita com intervenções pontuais, o beijo do bom dia com o romper do dia, o beijo da boa noite com a ida para a cama, o respeito pelos mais velhos, bem uma panóplia de coisas que hoje parecem estar em desuso para muito boa gente, modernices, coisas que naquele tempo não cabiam na maneira de ser dos mais velhos. Mais tarde, já eu me parecia mais com um adolescente responsável, obrigava-me a cumprir uma quantidade de regras mais de acordo com a barba que ia crescendo, lembro-me de uma que me revoltava, era filho do patrão, mas o horário de trabalho tinha que ser comprido religiosamente. Tínhamos de dar o exemplo. Este era o meu Pai, chefe de família, dono de uma responsabilidade que era a de fazer de mim homem. Depois vinha um outro Pai, aquele que apenas eu sabia que estava lá, intuição de filho creio eu, mas talvez pela juventude incapaz ainda de perceber verdadeiramente aqueles sinais de proximidade.

Só mais tarde a idade me deu essa sabedoria. Este era o meu pai amigo, aquele que compreendia a minha juventude, este Pai era o máximo, tenho tantas saudades desse tempo. Ó meu Deus, seria bom ter apenas mais uma oportunidade para lhe poder dizer tanta coisa que ficou por dizer. Sei que nada posso fazer para voltar ao passado a não ser escrever, escreverei então. Quando eu chegava com o romper da manhã a casa, feliz por poder estar com os meus amigos nas borgas, ele esperava-me no cimo das escadas, e perguntava: – então! a noite correu bem? Hoje deve ter sido uma noite fantástica pela hora! Eu lá lhe respondia da maneira que sabia, pouco há para dizer a um Pai nestas circunstâncias, pensava eu. Hoje, talvez lhe explicasse um pouco mais da noite, talvez lhe dissesse uma das muitas ocasiões que me tinha rido entre os amigos, hoje, eu sei que ele compreenderia muito melhor do que eu imaginava o que é a juventude. Nunca mais me esqueço do dia que tirei a carta de condução. Com carta, com carro, e já com o meu ordenado, ele sabia que naquele fim-de-semana o automóvel comprado por ele seis meses antes não iria parar. Eu era jovem, e a energia aliada à alegria da conquista de mais um meio para voar não daria descanso à viatura.

Abriu a carteira e deu-me uma quantia de dinheiro que dava para encher o depósito umas quantas vezes. Só um Pai diferente saberia ler a minha juventude naquele tempo, os meus sonhos. Liberdade com máxima responsabilidade. Amizade foi o que sempre houve no meu Pai, tanta que hoje toda aquela que eu tenho de nada vale, é miserável, não fiz nada por ela, herdei-a, nem trabalhei para a ter. Sou afinal um miserável de homem que ainda tem tanto para fazer. Um dia, já o meu Pai doente, e velhote, deslocava-se a um banco na minha cidade, um sujeito na casa dos seus quarenta anos, dirigiu-se a ele e disse:

-Sr. Lopes, o Sr. não sabe quem eu sou, mas eu sei bem quem o Sr. é. O Senhor, sempre me oferecia dois rebuçados em criança, e nem imagina como isso era fantástico! Chorei ali a seu lado, o meu Pai sempre trazia rebuçados para as crianças no bolso, no tempo em que nem os ricos os comiam. Fazia acontecer milagres, estes que eu hoje ainda acredito. Hoje, ainda guardo a inveja que todos os meus amigos me tinham por eu ter um Pai especial, também eles eram servidos pela compreensão. Eram até estes que lhe davam conta dos nossos maiores feitos na noite bracarense, coisa que o meu Pai sempre respondia com um sorriso e com uma palavra de um homem que não envelhecia. Este homem que tinha passado as “passas do Algarve” queria para o seu filho aquilo que nunca teve.

Por isso, quando vejo por aqui gente a desdenhar da amizade, a culpar o mundo, a desconfiar das virtudes das pessoas, eu sempre tenho um truque em memória para apagar o mau estar que me provocam, lembro-me do meu Pai, da minha casa, do labor que ali havia para fazer os filhos mais felizes. Que melhor posso eu crer? Para esses, que estão de mal com o mundo eu deixo um conselho, e se nunca tiveram uma casa onde a palavra amigo era servida diariamente entre sorrisos e carinhos, não venham com morais bacocas para cima de mim, esforcem-se, coloquem a inteligência de parte, as diferenças e façam a sua própria casa, com esse valor de amizade. Talvez assim deixem de desconfiar do mundo, talvez assim se encontrem, e quem sabe conseguem escrever poesia sem rima, daquela que sai do coração, sem mecânica e sem desconfiança.

Eu, por mim digo-vos não valho nada, tudo que tenho foi-me dado pela minha casa, esta tinha uma família que agora sinto cada vez mais forte. Aos meus filhos, quero que saibam tudo do avô, a avó ainda é viva e feliz. Já de mim sabem quero que saibam que gosto da juventude deles, gosto dos jovens, de todos os jovens, principalmente daqueles que tem sonhos, gosto de os ver felizes, gosto de os ver sorrir, gosto que me olhem nos olhos e saibam que também eu um dia fui jovem, com amigos, com noitadas, com palermices, com um milhar de coisas que apenas se encontra nesse tempo. Agora, tudo faço para os compreender, mas não têm que me agradecer nada, eu nada fiz, têm de agradecer ao avô, Lopes. Ainda hoje, o lugar dele está por ocupar, por isso é que não deixo ninguém tratar-me por Lopes, não sou, nunca estarei confortável com esse nome, mas sou um José Luís que gosta da palavra amigo, em minha casa ou no Luso, não somos num lado, o que não somos no outro.

Aos que desconfiam desta palavra aconselho-os a deixar a poesia, esta é feita de palavras amigas.

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