segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Realejeiro"













Hoje acordei com uma caixa de música na cabeça. Depois de um forte esforço supra-matinal lembrei-me do realejo. A questão que se curvou sobre o meu ar ensonado do antes do pequeno-almoço é saber que nome se dá ao homem que toca o realejo. Nada me ocorreu na memória colectiva, recorri com a destreza possível das manhãs à memória selectiva e o resultado foi o mesmo, mais um nada. Depois de farto o estômago, cansado da longa travessia do vazio da noite, com um “petit dejeuner” leve, mediterrânico pobre, pão com manteiga magra e uma meia de leite directa, esta tirada numa Nespresso do famoso actor George Clooney, e uma almoçadeira “xpto” com os dizeres: “Breakfast”. Percebi o motivo porque se fala tanto na globalização, o estrangeirismo está por todo o lado, faltou-me o Financial Times ao lado da tosta, e aquele ar de “self-made man” que a todo o momento arranca para o mundo dos negócios amarrado a “long cashmere coat”, “paraguas” e “petite serviette en cuir noir”. Não aguentei a pressão da ignorância e abalei em busca do conhecimento, tem que haver um nome para o homem que toca o realejo. Parti das premissas filosóficas do geral para o particular: - Se os homens dos relógios são relojoeiros, logo os homens dos realejos são realejeiros. Não me suou muito bem! há nesta palavra um paladar avinagrado, aziumado, assim… tipo iogurte fora de prazo. Percebi, talvez tardiamente, que um homem que toca uma caixa de música nunca poderia ser realejeiro, impossível, esta palavra não tem dignidade, estaleca, não é arrebatadora, ninguém ouve um realejeiro por muita arte que o homem da música tenha a dar à manivela, (isto pensava eu, verão que vou mudar de ideias). Apenas os nomes simples perduram na história, Manel, Maria, tia Alzira, Tio Tone, Arménio, Quim, Sr. Silva ou então um com “pedigree”, com sangue azul, um nome que só de olhar absorva toda a história dos antepassados, estou por exemplo a lembrar-me dos Pauliteiros de Miranda, o exemplo não podia ser melhor, o nome diz logo que estes gajos são do tempo do Viriato, e os paus são apenas um pormenor, esta região tocaria outra coisa qualquer, o seu DNA é daqueles que não engana, e a música apareceria nem que fosse a bater com calhaus em latas de salsichas. Pensei então que o nome mais apropriado para o homem do realejo seria realejumúsico. Se este homem faz música tem toda a lógica este nome. Mas a questão é saber que tipo de música o homem do realejo toca e se isso poderá influenciar o nome da sua arte. Imaginei um realejeiro a tocar jazz, bem, o nome sofria logo uma mudança substancial, para cativar os aficionados do jazz o melhor seria o realejeiro chamar-se ou “realjazemúsico”, isto é, se este tivesse importado a caixa de New Orleans e a música produzida pela manivela permitisse imitar a trompete do Louis Amestrong. Depressa compreendi, que este nome ligado ao jazz era bastante castrador para os realejeiros da música popular, os ditos pimbas, e que nunca ouviram jazz. Ficariam ligados a uma música influenciada pela comunidade negra, coisa que a nossa terra não está preparada, por aqui o fado ainda é que dita as regras. Mas ainda há os nórdicos, os homens de cabelo loiro e olhos azuis, desgostosos com a conotação do instrumento à cultura do cabelo encarapinhado e pele escura, é certo e sabido, que este gajos emproados não iriam gostar, e o mais certo é o aparecimento de um movimento anti-realejo. Estou perante um caso daqueles que em linguagem popular se pode dizer de bicudo. Vou ter que ter muito cuidado com as tendências musicais, não posso castrar a clave do sol, o sol quando nasce é para todos, logo todas as tendências musicais tem que se rever neste novo nome. Não sou homem para desistir de nada, mas depois de várias pesquisas “científicas” on-line, enciclopédia Luso-Brasileira, dicionários de várias línguas incluindo o chinês, o marroquino, romeno e o dos PALOPs, e outros meios que dispunha para levar a cabo esta espinhosa tarefa, concluí que afinal o nome que a linguística portuguesa construiu para este fazedor de música “box” é afinal um nome bem simples: O Homem do Realejo! Abriu-se uma brecha na história para mim, posso finalmente criar um nome de um fazedor de arte musical com manivela, uma arte milenar com um novo nome para o homem criador de sons perfeitamente ligados entre si, quer isto dizer, música. Este novo nome terá a dignidade que há muito tempo é devida a estes homens da música. Será um nome próprio, capaz de ser sindicalizado, e suficientemente aglutinador para levar em frente a sua primeira associação de classe, suficiente forte para defender os seus interesses e capaz de lhes devolver a dignidade que nunca tiveram. Estou espantado comigo, acabei de fazer uma regressão histórica, voltei às lutas dos trabalhadores do século XIX em Inglaterra, à revolução das massas, dos direitos do operariado, do movimento sindical, da conquista do salário justo, das desigualdades enfim, a luta do proletariado contra o grande patronato. Estou estarrecido, pela primeira vez faço parte da história, o meu nome será a Grândola Vila Morena dos realejeiros, sou a revolução de uma classe. A partir de hoje o Homem do realejo será o realejeiro com toda a dignidade que merece. Estará ao mesmo nível dos relojoeiros, sapateiros, pistoleiros, politiqueiros. Sinto-me satisfeito, não por mim que sou um insatisfeito compulsivo, sinto-me satisfeito pelos realejeiros de todo o mundo, e sei que não são poucos. Mais tarde ou mais cedo a humanidade perceberá a importância dos realejeiros no desenvolvimento da arte musical neste novo mundo global. Mas importante mesmo, é este acordar louco de um louco como este que vos escreve com prazer.


José Luís Lopes



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